CRÍTICO DA CASA - Texto 1

A Bienal Publica!, um dos eventos de inclusão e de visibilidade artística da Bienal de Quadrinhos de Curitiba, tem o prazer de lançar sua edição “Música & Quadrinhos”, com novidades: além da coletânea impressa, já tradicional, a Bienal Publica! diversificou seu formato e agora A Bienal de Quadrinhos de Curitiba me convidou para uma função que é inédita para o evento e mais ou menos inédita para mim. Fiquei responsável pela crítica da 6ª Bienal. Sou o “Crítico da Casa”, convidado a dar opiniões sobre o evento conforme se desenrola nesta edição, e estas opiniões ficarão às vistas tanto da organização quanto de quem quiser.

Tipo um ombudsman, mas não vamos de termo Nutella. “Crítico da Casa” é mais, hã, da casa.

Digo que a função é mais ou menos inédita para mim porque uma das minhas funções profissionais é ser crítico.
Principalmente de quadrinhos, coisa que faço há uns vinte anos. Neste tempo, acompanhei o cenário dos quadrinhos no Brasil e fora e participei de vários eventos de HQ, também no Brasil e fora. Estive em todas as edições da Gibicon/Bienal de Quadrinhos de Curitiba e tive a honra de ser curador de uma (a 5ª, junto a Mitie Taketani, em 2018). Desenvolvi alguma noção crítica a respeito do que gosto em um evento e por quê, assim como já me coloquei no papel de – e conversei, troquei ideias, entrevistei – públicos que eventos como a Bienal têm interesse em atingir. Entendo que seja por conta destas experiências que me convidaram para ser “Crítico da Casa”.

* Não vi as lives quando eram lives nem na ordem em que aconteceram. A primeira palestra que assisti foi “É brega!”, com Gidalti Jr. A pouco mais de dez minutos de bate-papo, eu pensei: “Que grande sacada da Bienal ter escolhido essa relação entre quadrinhos e música como tema – e aí descobrir que essa relação já existia!” Eu já conhecia as prévias do novo álbum de Gidalti, Brega Story, que trata do movimento/estilo musical e sua vertente paraense. Não sabia que Gidalti tinha uma banda. Comecei a lembrar de quantos quadrinistas também tinham bandas, de músicas que citavam quadrinhos, de quadrinhos que tinham a música com tema…

E aí me dei conta que eu estava pensando a coisa pelo lado inverso. Oras, se a Bienal escolheu o tema “Música e Quadrinhos”, não era para descobrir a relação entre uma coisa e outra – a organização e os curadores já sabiam que esta relação existe. E que é forte. Eles não estão descobrindo agora. Quem estava matutando todas as relações entre quadrinhos e música naquele momento era eu, e a Bienal já tinha matutado tudo.

Com o decorrer do papo, comecei a pensar que, por mais que eu estivesse ali para um evento de quadrinhos, estava faltando música. Não papo sobre música, que aconteceu. Música em si. Tive uma surpresa genuína quando o mediador Felipe Cordeiro começou a tocar e cantar. Sendo o primeiro vídeo que eu assistia, achei que seria a grande sacada do evento: todos os debates/palestras dariam espaço à música, literalmente música, para não ficar só no papo sobre HQ.

Não foi bem assim. No segundo vídeo que assisti, o debate “Coletivos e a cena independente”, música não era foco e focou-se uma questão que atende a um público bem focado: quadrinistas e a formação de coletivos.

Foi especialmente interessante trazer experiências de países diferentes (Brasil, Portugal e Bolívia) e até houve algum esforço de linkar o tema com música, perto do final. Faltou, quem sabe, fugir das cabecinhas falando e mostrar mais dos quadrinhos de que se falava.

Que é justamente o que aconteceu de forma eficiente no terceiro vídeo que assisti, “Corpas políticas”. As convidadas e o convidado prepararam – avisados previamente ou não – material para mostrar durante o debate e houve momentos para cada um ilustrar o que estava falando.

Mas este não é o ponto mais importante de “Corpas”. O mais importante do debate foi trazer a política como chave central. Tenho a impressão da Bienal de Quadrinhos de Curitiba como o evento de HQ onde mais se discute política; faz parte da identidade da Bienal, a meu ver. (Talvez porque Curitiba seja um ponto nevrálgico da política brasileira atual.) Questões políticas atravessam qualquer discussão, é claro – e apareceram em outros debates deste ano. Mas colocar uma destas questões políticas como ponto central de um dos debates do evento é respeitar e reconhecer esta identidade. (Também é o vídeo mais assistido da Bienal no YouTube.)

Mais uma vez, os relatos de experiências estrangeiras combinadas a uma brasileira é um modelo muito atraente.

O debate “Para crianças de 7 a 77 anos” também se preocupou com momentos para cada convidado fazer sua apresentação visual e não só falar dos seus quadrinhos. Mas mesmo que a mediadora Fafá Conta fosse a mais preparada tecnicamente para comandar uma conversa para públicos diversos, o debate rendeu menos por conta de experiências pouco diversas dos convidados.

A música voltou de uma maneira especial, e talvez com o melhor resultado da Bienal, no Lançamento “Curva – Música Ilustrada”. O movimento do lápis, pincel ou caneta sobre o papel é fotogênico e, pelo menos em mim, sempre provoca curiosidade. Mesmo que eu não saiba nem segurar uma caneta, ficaria horas assistindo uma pessoa competente criar cenas no papel, me surpreendendo toda vez que a caneta vai para o lado que eu não esperava. A ideia de combinar isto com música e transformar em performance não é nova, mas era algo indispensável para um evento sobre quadrinhos e música.

Abri o debate “Músicos que Amam Quadrinhos” estranhando a ausência quase total de quadrinistas (“quase” porque Thedy Corrêa já escreveu HQs). Foi o vídeo, contudo, onde mais se discutiu quadrinhos em si. Um papo de bar, variado e disperso como um bom papo de bar, com alguns momentos de profundidade inspirada – o próprio Thedy comparando o processo de construção letra/melodia com o processo de Lee e Kirby. Não foi um papo, talvez, para quadrinistas, sobre os bastidores do fazer quadrinhos, como são a maioria dos outros. Mas, justamente por isso, dá um equilíbrio interessante para o público geral de HQ – e aproximação – ver gente com alguma qualificação falando sobre HQs. Uma boa mesa de bar.

O debate “Música em Quadrinhos”, do mesmo modo, conseguiu gerar esse papo de bar, embora focando mais nos aspectos de bastidores. Por conta desse aspecto, faltou aos convidados mostrar seus trabalhos para ver do que estavam falando.

O “Lançamento do Livro ‘Paradas Musicais’” é interessante não apenas pelo convidado, Reinaldo Figueiredo, ter larga experiência em entreter, mas de ser acompanhado por um mediador, Sandro Moser, igualmente preocupado em criar 90 minutos interessantes, e com o devido preparo.

A palestra “Frauzio faz 20!” soube aproveitar uma das vantagens que há na desvantagem de fazer um evento na internet: invadir a casa das pessoas para mostrar seu ambiente de trabalho. E mostrar, no caso, a famosa impressora de Marcatti ao fundo enquanto ele fala de sua carreira como independente – independente até na produção física dos quadrinhos. Embora este aspecto não tenha sido explorado a fundo – a vontade de passear pelo estúdio com a câmera e conhecer mais do trabalho era grande – foi importante mostrar Marcatti falando do seu trabalho no próprio ambiente de trabalho, como seria com qualquer artista no seu espaço sagrado.

O debate “Memória: preservação de acervos” voltou a focar um tema de interesse bastante específico, o do título, mas a condução buscou criar interesse pelo tema e, sobretudo, lembrar a importância da preservação do quadrinho nacional.

O último vídeo que assisti, o debate “Sobre viver na rede”, reviveu em vários momentos o aspecto político que considero identitário da Bienal. Apesar de disperso, como é esperado dentro de um tema bastante amplo, acredito que tocou em vários temas importantes relacionados a ser quadrinista e usar redes sociais, tais como as campanhas de financiamento coletivo e a relação com a crítica. Foi um debate útil tanto para autores quanto para leitores saberem o que se passa por trás de cada manifestação de seus autores nas redes.

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Dois últimos comentários gerais que queria colocar de conclusão:

A 6ª Bienal de Quadrinhos de Curitiba, nesta primeira fase, se inseriu no meio da avalanche de lives, debates e entrevistas online que são nossa forma de fazer eventos – e de se distrair – nessa pandemia que nunca acaba. Material online com hora marcada não é minha preferência, mas entendo que a opção pelas lives é bem-vinda pelos que gostam de participar no chat, mandar perguntas, ter o mínimo da participação que acontecia nas salas do Muma nos tempos de Bienais “físicas”. É válido, sem dúvida. Penso, porém, que esse material rico criado nas lives ainda é um bruto, que merecia uma triagem – leia-se: edição – para captar o que houve de mais essencial a cada debate ou palestra.

Tenho que reconhecer que esse bruto de lives teve, incrivelmente e com muita sorte, pouquíssimos problemas técnicos – que me pareceram concentrados na conversa com Marcatti, mesmo que tenham sido em uma pequena porcentagem da transmissão. Não é questão, portanto, de corrigir falhas ou “vazios” destas lives, mas de compactá-las – talvez em um vídeo só – com o que a 6ª Bienal trouxe de melhor nessa primeira fase. Há algumas pepitas importantes que podem ficar perdidas nas mais de 15 horas de vídeo.

O outro ponto diz respeito à unidade do material e do conceito da Bienal em si. Não há dúvida quanto à identidade gráfica, bem pensada e colocada como é em todas as edições. Mas, pensando dentro da unidade da Bienal como “canal” (temporário que seja), penso que dois pontos podiam acrescentar à visibilidade da Bienal como um só evento, e levar um vídeo a gerar interesse pelo outro:

- O primeiro seria ter uma apresentadora ou apresentador que fosse a voz da Bienal, um elemento de conexão bastante evidente, que iniciasse e terminasse os vídeos, que lembrasse da programação.

- A segunda, uma integração temática como, por exemplo, uma mesma pergunta que fosse feita aos convidados em todos os vídeos. Algo relacionado ao homenageado do ano, Luiz Gê, ou sobre a música em que a pessoa vê quadrinhos, o quadrinho em que a pessoa sente música. Que gerasse uma multiplicidade de respostas a partir do mesmo ponto de partida, sendo esse ponto de partida um dos temas da Bienal.

Penso que seria uma maneira de um vídeo convidar a outro e contribuir para a unidade do material que a Bienal gerou.

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Queria ressaltar que, como em toda crítica, posso levar a contracrítica comum do “então vem aqui e faz”. Conheço muito pouco da organização prática, mão na massa, de um evento para ditar o que deveria ser feito, como poderia ser feito e que recursos deveriam empregar mais ou empregar menos para a execução da Bienal. Minhas opiniões tratam do que o evento é e faz algumas propostas, mas não se dirige em específico a pessoa alguma ou outros envolvidos na organização. É uma crítica ao evento. Tal como considero um artista quando escrevo uma crítica, considero que todos deram o máximo de si na produção da Bienal.

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